A dama da dramaturgia nordestina ...PARTE I



Quem é Lourdes Ramalho?

Autora de extensa obra publicada, celebrada como grande dama da dramaturgia nordestina, premiada no Brasil, em Portugal e na Espanha em inúmeros concursos de dramaturgia e festivais de teatro, Lourdes Ramalho é, portanto, esta dramaturga ímpar na história do teatro da Paraíba, que tem seu lugar assegurado – mas ainda não plenamente reconhecido – entre os grandes nomes do teatro brasileiro, sendo uma das expressões mais significativas da nossa dramaturgia contemporânea de autoria feminina. 

Lourdes Ramalho, uma escritora de origem potiguar nascida no início da década de 1920 (23 de agosto, 1923), no sertão de Jardim do Seridó, fronteira do Rio Grande do Norte com a Paraíba, numa família de artistas e educadores, seu bisavô violeiro e repentista, mãe professora e dramaturga, tios atores, cordelistas e violeiros. Lourdes Ramalho cresceu ouvindo cantorias de viola e histórias contadas por vendedores de folhetos e assim aprendeu, desde cedo, a amar sua terra e a cultura do seu povo. 

O QUE LOURDES RAMALHO ESCREVE
A maior parte da produção literária de Lourdes Ramalho é de textos para teatro. Seu fazer literário passa, entretanto e desde sempre, pela poesia e, ultimamente, contempla, ainda, a área da genealogia – revelando-se também aí a pesquisadora de fontes históricas, interessada em descobrir as raízes judaicas da cultura nordestina e, por extensão, da sua própria família. Suas primeiras peças foram escritas por volta dos seus 10-12 anos de idade, quando brincar de teatro era sua diversão favorita. Incentivada pelos tios e, sobretudo, pela mãe, a menina Lourdes colocava no papel as falas e as ações das personagens que reinventava e, em seguida, comandava os ‘ensaios’ para as apresentações, de que também participava e que aconteciam em reuniões familiares e escolares. Datam desse tempo as primeiras versões de alguns dos seus muitos textos teatrais infantis. Quando escreveu o primeiro texto teatral propriamente dito, em 1939, Lourdes era ainda uma adolescente. Aluna de um colégio interno, no Recife, indignada com a precariedade de condições da escola, põe no papel, em forma de comédia, seus protestos contra a falta de professores qualificados, a má qualidade da alimentação e as medidas disciplinares abusivas. Transformado em cena pela própria autora, o texto foi apresentado na festa de encerramento do ano letivo do colégio, detonando um embate entre pais e mestres, que resultou na expulsão da aluna-escritora. Nos trinta anos seguintes, ou seja, entre as décadas de 1940 e 1970, é na sala de aula e em grêmios artísticos estudantis que Lourdes, conciliando seu o ofício de dramaturga e poeta com o de professora, encontra espaço para suas atividades de animação cultural, voltadas especialmente para a cena teatral e já então anunciadas como projeto de vida. De 1975 em diante, após a primeira montagem teatral do seu texto As velhas, seus textos começam a ser montados fora de Campina Grande, na Paraíba, onde reside até hoje, ganhando a estrada rumo a outras partes do país através de festivais de teatro amador.

LOURDES RAMALHO, O TEATRO BRASILEIRO E O NORDESTINO
Situar a dramaturgia de Lourdes Ramalho no contexto do teatro nordestino e, mais amplamente, no quadro do teatro brasileiro contemporâneo, demanda um flash-back, feito aqui muito brevemente, aos idos de 1959, em Recife, onde um grupo de atores, intelectuais e poetas, se forma em torno da idéia de redemocratizar o teatro. Herdeiros de um ideário estético ligado à tradição regionalista do romance de 30, os integrantes deste grupo, entre eles, Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna, tomam a si a tarefa de renovar a cena teatral local. Adaptando as propostas que o Teatro de Arena de São Paulo vinha divulgando Brasil afora, o grupo se mobiliza para escrever e levar ao palco textos que mostrassem a cara do nordestino, colocando em cena experiências, conflitos e sonhos do povo da região. O Teatro Popular do Nordeste, como foi batizado esse grupo, defendia o conceito de um teatro popular, apoiando-se, sobretudo, no trabalho de recriação das narrativas do imaginário popular, traduzindo a intenção de levar a população local a reconhecer a si mesma e à sua cultura. Logo surgem pela região outros grupos afinados com esta proposta e buscando assimilar as tendências em curso no Sudeste. Em meio a esta efervescência, surge o Teatro do Estudante da Paraíba, também com o propósito de renovar a cena local via cultura popular. Na década seguinte, cresce um movimento em torno do Teatro Santa Roza, em João Pessoa, e do recém-construído Teatro Severino Cabral, em Campina Grande, e já na primeira metade dos anos 1970, entre outros nomes da dramaturgia local, como Altimar Pimentel e Paulo Pontes, começa a ganhar projeção o de Lourdes Ramalho. São desta época, peças como Fogo-fátuo, As velhas, A feira, Os mal-amados, A eleição, com as quais Lourdes Ramalho desponta no cenário teatral do país, com a proposta de reinventar no palco o universo nordestino, valorizando sua herança cultural. Nestes textos, que formam o primeiro ciclo desta dramaturgia, estão em discussão a seca, o êxodo rural e os abusos de poder político local, lado a lado com questões relacionadas a vinganças familiares e amores impossíveis que acabam tragicamente. Opõe-se, outra hora, o rural e o urbano, o ingênuo e o esperto, o privilegiado e o discriminado, o opressor e o oprimido. Joga-se, formalmente, com o sério e o burlesco, o trágico e o cômico, o sublime e o vulgar, a indicar os contrastes tão próprios da vida humana e revelando, ainda, a dramaturga engajada, pronta a denunciar a poluição cultural que invade o sertão nordestino na época do segundo pós-guerra com a presença norte-americana em busca das jazidas de minério ali existentes e a prática corrupta dos políticos na corrida pelo voto e, por extensão, pelo poder, como também as conseqüências trágicas provocadas por práticas socioculturais fincadas na assimetria das relações de gênero. Outra linha de força da dramaturgia de Lourdes Ramalho toma corpo a partir dos anos 1990, quando ela passa a dar mais ênfase a uma dramaturgia em cordel. Romance do conquistador, por exemplo, escrito em 1991, nasce precisamente de uma encomenda dentro do Projeto de Incentivo à Dramaturgia de Cordel, desenvolvido em Campina Grande, sob a coordenação do diretor ibero-brasileiro Moncho Rodriguez, a partir do Centro Cultural Paschoal Carlos Magno. Encenado em terras brasileiras nesse mesmo ano, Romance do conquistador saiu em turnê pela Espanha, em 1992, como representante do Brasil nos festejos dos 500 anos da chegada dos espanhóis à América. Compõem este segundo ciclo da dramaturgia de Lourdes Ramalho vários outros textos, como O trovador encantado, Charivari, Presépio mambembe e Guiomar filha da mãe, nos quais se privilegia uma proposta estética voltada para o desvendamento e a re-significação das raízes étnico-culturais do universo popular nordestino, especialmente as que remontam à cultura ibérica do século XVI. Deste modo, sem deixar de lado o propósito de discutir e dar visibilidade a práticas culturais e experiências de mundo da gente do sertão nordestino, Lourdes Ramalho busca situá-las num contexto que traz à tona traços de uma ancestralidade ibérica. Lourdes Ramalho até hoje, grande parte dos textos são em prosa, mas muitos também em verso, que vão da farsa à tragédia, há um vasto repertório dedicado ao público infantil. Em suas incursões no universo do teatro para crianças, a autora revisita personagens, fábulas e procedimentos estéticos da literatura popular em verso e de contos de fadas, além de provérbios e danças dramáticas, realizando uma mistura de versos e ritmos, tudo envolto num clima de magia, brincadeira e festa, próprio da cultura popular e, igualmente, do teatro infantil. Textos como Novas aventuras de João Grilo, Dom Ratinho e Dom Gatão, O diabo religioso, Maria Roupa de Palha e Anjos de Caramelada, além de muitos outros, instituem este mundo de fantasia, recriado a partir do teatro popular de rua, do circo, das histórias de folheto de cordel, a que não falta, porém, a crítica social incisiva característica da produção da autora. 



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