Direto do forno


Direto do forno traz o diário do ator Mossoroense Dionizio do Apodi que esta em São Paulo trabalhando com o mestre Cacá Carvalho no processo de mergulho através de oficinas teatrais.

Diários de São Paulo

São Paulo, terça-feira, 03 de Dezembro de 2013
A herança do Rei Lear

Tomo a liberdade de publicar alguns trechos de meus apontamentos nesta experiência que estou começando por São Paulo. Hoje foi meu primeiro dia de experiência com o Cacá Carvalho (sem sombra de dúvidas, um dos maiores homens de teatro de nosso país), no Centro Cultural São Paulo. Com a minha seleção num pequeno grupo para ter uma experiência única com o Cacá, escolhi São Paulo para representar uma nova etapa na minha vida, em todos os sentidos. Como não dissocio o teatro da minha vida, pois não tenho como, nem quero, e se quisesse não haveria caminhos, esta nova etapa chega através dele, do teatro.



Sempre tive uma grande admiração pelo Cacá, pela trajetória dele, pelos espetáculos onde o vi atuando, e por incrível que pareça, não vi os seus tão propagados personagens na TV, mas o que vi no teatro me bastou para querer trabalhar com ele, para querer estar perto dele, para ouví-lo. E aqui estou em São Paulo, para agarrar e aproveitar a oportunidade de ouvir o Cacá de perto. 



Nosso primeiro dia foi divino, revelador, para mim, emocionante. Estamos estudando Rei Lear, de Shakespeare, obra onde podemos destacar a herança deixada por Lear às suas filhas. E é aí onde Cacá Carvalho nos provoca a pensar sobre quem seria Rei Lear hoje em nossa sociedade, e que herança seria essa. Cacá é cheio de questionamentos, e ele mesmo diz que quer questionar por onde não sabemos, pois não se faz cultura em cima do que já existe. A cada questionamento ele provoca grandes e profundos silêncios em mim e em todos os companheiros. Nos provoca, mexe, não tem como sair ileso. 



Rei Lear tem muito, tem tudo, é maior que qualquer um de nós. Esta herança deixada por ele, para as suas filhas, nos fez chegar aos grandes mestres de nosso teatro brasileiro, como Zé Celso, Antunes Filho e Amir Haddad, só para citar alguns. Quem vai herdar o conhecimento destes grandes homens? Para quem vai ficar? Ao pensar em Rei Lear, de Shakespeare, Cacá nos põe esta inquietação: o que vamos fazer com a herança destes grandes homens de nosso tempo? E aí recorro um pouco ao passado e me questiono: o que estamos fazendo com a herança deixada por João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rêgo, José de Alencar, Câmara Cascudo (estou citando nordestinos porque sempre que chego em São Paulo meu sangue nordestino fervilha). Onde estão as heranças destes homens? Foram muitas cenas apresentadas, discutidas, e provocadas pelo Cacá. A minha cena ainda vai ficar para amanhã. Cacá havia nos passado um exercício de apresentar qualquer trecho de Rei Lear, utilizando um objeto de livre escolha. Confesso que eu estava morto de vontade para fazer hoje, mas não deu tempo chegar em mim. A cada exercício apresentado ele discutia, propunha exercícios, nunca perdendo o foco das circunstâncias, que sustentam o texto.



A minha identificação com o Cacá vem pela convicção de trabalhar o ator, é imprescindível. Quem me conhece, que trabalha ou já trabalhou comigo, sabe que eu acredito nisso. Ser ator não é profissão, é vocação, é sacerdócio. Foi precioso de mais este primeiro dia, em ver o Cacá colaborando com todo mundo, de forma prática, com uma vasta experiência de palco, de vida, dizendo que "o ator precisa ser um vírus. Morrer e continuar nos outros", e que não defende espetáculo, mas defende ator, aquele ser que se dispõe a estar ali. Não estamos sozinhos.



Não há como descrever estas primeiras horas de trabalho, numa sala, mas não tenho dúvidas que chegarão nas atuações de cada um que presenciou. O Cacá é um ator perfeccionista, matemático e se ele sabe que um ator é bom numa coisa, ele vai explorar outra. Ao final da aula não tive como aplaudir, pois as mãos estavam enxugando as lágrimas, num cantinho, pelo encontro, e pelo momento que proponho a mim, como cidadão do teatro, da vida. Fiquei pensando na quantidade de pessoas que investiram em mim, desde quando eu era embrião. Quanto investimento da família, dos professores, de amigos, de companheiros. Quanta gente acreditou e acredita, e meu retorno vem pelo teatro, que para mim é vida. É a minha vida. Não enxergo teatro como um texto para decorar, uma apresentação para fazer, mas o encaro como possibilidade de aproximação, de encontro com as pessoas. Certa vez alguém me repreendeu quando eu disse que o teatro para mim era fundamental, era minha vida. Este alguém discordou dizendo que preferia pessoas. Mas é que eu, Dionízio, não vejo teatro sem encontro de almas, de pessoas, de vida. Existe muitos espetáculos acontecendo por aqui por São Paulo, lá por Mossoró, e por todo lugar, mas há pouco teatro. As pessoas assistem peças, espetáculos, mas não vêem teatro; os atores fazem espetáculos mas fazem pouco teatro. Quando alguém encontra-se com teatro mesmo, de verdade, nunca mais esquece, e é transformado a partir do local mais profundo de sua sensibilidade. 



Hoje, neste mundo idiotizado, o teatro se mantém como instrumento para aproximar, verdadeiramente, e não apenas virtualmente, as pessoas.

Dionízio do Apodi
(apenas um homem de teatro)

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