Exemplo a ser estudado e discutido por aqui "No pais de Mossoró"

10 anos de teatro e luta contra a barbárie em São Paulo

Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, que mudou a cena teatral na maior metrópole brasileira, completa 10 anos como uma das políticas públicas mais importantes para o setor. Invertendo a lógica da renúncia fiscal, a Lei de Fomento afirma o papel do Estado em garantir a cultura como direito do cidadão. 

 

São Paulo - No ano de 2002, com a vontade política de uma Câmara Municipal progressista e o apoio de um governo que tinha compromisso com o desenvolvimento da cultura na cidade de São Paulo, foi aprovada uma lei que transformaria a produção teatral na cidade e se tornaria um paradigma no cenário cultural brasileiro em se tratando de política pública para o setor. Resultado direto da iniciativa de grupos e companhias estruturados sobre um modo coletivo de produção, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, criado pela Lei 13.279/02, comemora esta semana 10 anos de vida.

Para contar essa história, a Cooperativa Paulista de Teatro lançou o filme "Teatro Contra a Bárbarie", de Evaldo Mocarzel, e o livro "Teatro e Vida Pública", organizado por Maysa Lepique e Flávio Desgranges. O filme parte do surgimento do Movimento Arte Contra a Barbárie para tratar da Lei de Fomento ao Teatro e seus desdobramentos, retomando a importância de se consolidar políticas públicas para a cultura que não estejam submetidas a interesses do mercado e a governos transitórios.

"Quando pensamos no projeto de lei, as leis de renúncia eram a única alternativa de financiamento para o teatro. Nosso objetivo foi fazer valer o respeito constitucional do dever do Estado de garantir o direito à cultura, neste caso, em escala municipal. Foi uma construção de parte da categoria, que se empenhou politicamente e se organizou para elaborar e defender a aprovação da lei e a existência do programa", conta Ney Piacentini, presidente da Cooperativa Paulista de Teatro.

Com a mudança da gestão municipal, o programa sofreu ameaças de descontinuidade. "Então fomos às ruas, mobilizamos a opinião pública e aí o governo passou a ver que era algo que interessava para São Paulo. O processo mudou o teatro na cidade, que passou a ser mais acessível à população, com uma forma de produção mais democrática, mais coletivizada, descentralizada e de maior qualidade", acredita Piacentini.

Desde a sua implantação, o Programa já contou com 20 edições, que fomentaram cerca de 300 projetos de 100 grupos teatrais. O orçamento anual, rubricado, está hoje em R$ 13 milhões. São apoiadas companhias de teatro estáveis, ou seja, que se mantém independentemente de produções específicas. O fomento é para projetos de trabalho continuado de pesquisa teatral e acesso da população a este bem cultural.


Local: Praça da República
Espetáculo: O Santo Guerreiro e o Herói Desajustado
Grupo: Companhia São Jorge
Direção: Rogério Tarifa
Foto de Zeca Caldeira


Para a classe artística e os trabalhadores do teatro, a Lei de Fomento em São Paulo se transformou num marco na formulação de políticas públicas para a cultura, inspirando outros estados e também o governo federal na criação de mecanismos de fomento mais democráticos. É o caso do Prêmio Teatro Brasileiro, um projeto de fomento que tramita atualmente no Congresso Nacional; da Lei de Fomento à Dança, também aprovada em São Paulo em 2006; e de programas semelhantes em cidades do Grande ABC e na capital gaúcha, Porto Alegre.

Reencontro com os bairros
Além do orçamento fixo, determinado em lei, um dos eixos diferenciais do Programa de Fomento é a relação das companhias de teatro com a cidade e os bairros e comunidades onde se localizam. A idéia é garantir o fomento para a cidade e seus cidadãos, e não especificamente para os atores.

"O Programa apoia grupos que tem relação com o local. A companhia já está estabelecida num determinado bairro e, com o fomento, a comunidade passa a participar de seu processo de criação. Deixa de haver aquela relação tradicional, de um grupo de teatro que vai a uma comunidade e só a enxerga como público, ou então que vai até lá fazer um trabalho de pesquisa, suga o que precisa saber e depois não aparece mais. Com a lei e os projetos apoiados, passa a haver uma relação efetiva de criação; pessoas que não entravam numa sala de teatro passam a ter com esta arte uma relação que não tinham antes", explica Maysa Lepique, uma das organizadoras do livro "Teatro e Vida Pública" e vice-presidente da Companhia Paulista de Teatro.


Local: Em frente ao Mosteiro São Bento
Espetáculo: A Rua é um Rio
Grupo: Tablado de Arruar
Direção: Martha Kiss e Vitor Vieira
Foto de Veridiana Mott


Segundo a atriz, o lugar e a cidade são tema de pesquisa dos grupos, que trabalham com memória e valorizam a identidade das comunidades. "São grupos preocupados com o seu tempo, que tem preocupação temática pertinente à vida da cidade de São Paulo", acrescenta. Nesses 10 anos de Programa de Fomento, vários trabalhos contemplados tem parceria com movimentos sociais e construíram suas peças em locais com histórias de profunda exclusão na cidade, como os albergues da Prefeitura e as periferias mais distantes do município.

“Talvez por isso o movimento que se organiza em São Paulo no final dos anos 90 e que tem como meta a revisão das políticas públicas para a cultura, especialmente para o teatro, se intitule Arte contra a barbárie. Parece se inspirar nesta noção primeira de civilidade, tomada no sentido positivo de algo que qualifica a oportunidade do desenvolvimento humano, por oposição a um estado de coisas em que viceja algum tipo de desordem injusta”, escreve no livro o jornalista, crítico e pesquisador de teatro Kil Abreu.

A possibilidade de dialogar com a sociedade e de fazer teatro político em São Paulo foi trazida de volta pelo Programa de Fomento, depois de silenciada durante o período da ditadura militar. Na época, havia cerca de 30 grupos de teatro em bairros populares da cidade. Com a repressão, as pessoas foram presas e os grupos paralisados. Após a redemocratização, muitos deles mudaram sua linha de atuação.

"Mas havia um desejo de retorno aos bairos, à população que está proibida de participar da cultura. Então veio a Lei do Fomento, criada por órgãos representativos da categoria, num processo lento, mas com contornos definitivos. E que permitiu este reencontro com os bairros", relatou César Vieira, um dos fundadores do grupo Teatro Popular União e Olho Vivo, durante o lançamento do livro e do documentário esta semana.


Local: Vila Maria Zélia
Espetáculo: Hygiene
Grupo: Grupo XIX
Direção: Luis Fernando Marques
Foto de Adalberto Lima


Para a pesquisadora e professora da Universidade de São Paulo Maria Silvia Betti, o Programa permitiu um expressivo florescimento de várias modalidades do fazer teatral na periferia urbana de São Paulo, com um grande crescimento da capacidade de atuação de jovens grupos da cidade. “Na prática, o que conseguimos foi criar um lugar de reconhecimento histórico para o teatro de grupo, o que não existia, e com a Lei de Fomento uma relativa melhoria das condições de existência desse trabalho de contramão”, também escreveu no livro Sérgio de Carvalho, dramaturgo e encenador da Companhia do Latão.

Prefeitura na contramãoInfelizmente, mesmo tendo virado lei, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo continua sofrendo ataques. Na avaliação de diversos grupos e companhias, a essência do Programa pode ser desvirtuada por decretos de caráter fiscal que vem sendo publicados pela Secretaria de Cultura do município e que acabam por engessar os processos de criação, um dos objetivos centrais do Fomento.

Outra crítica é contra a medida que permitiria à própria Secretaria apresentar projetos para disputar o orçamento fixo do Programa com os grupos de teatro da cidade. "O Programa poderia ser uma vitrine para a Prefeitura, mas há gestores que não gostam de ter verba rubricada e passam a atacar a lei", disse Maysa Lepique.

Para Ney Piacentini, o diálogo para convencer a Prefeitura de que tais decretos são prejudiciais está "truncado". "Já fomos ao Prefeito Kassab mostrar o que esses decretos estão causando. Agora vamos esperar a próxima gestão para saber que diálogo será possível com o novo prefeito", conclui.


Fotos: Destaque de foto de Zeca Caldeira. Espetáculo: O Santo Guerreiro e o Herói Desajustado, com direção de Rogério Tarifa. Local: Praça da República, São Paulo

fonte: http://www.cartamaior.com.br 

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