Direto do forno II


MAIS UM DIÁRIO

São Paulo, quarta-feira, 04 de Dezembro de 2013
"O problema do teatro é o mau-olhado" 

Mesmo Cacá Carvalho tendo nos alertado que se algum de nós dissesse que ele falou tal coisa ele negaria (rs), vou pegar esta frase dele, citada durante este segundo dia de encontro, para então comentar sobre o que eu acho acerca de que "o problema do teatro é o mau-olhado". Quando ele disse isso, deixou um silêncio na sala, e neste silêncio as reflexões tomaram de conta de todos nós. Acho que uma das inúmeras qualidades do Cacá, que já pude perceber é que ele sabe provocar com a palavra, e faz um silêncio para todo mundo pensar naquilo. 

Eu compactuo deste pensamento. E este mau-olhado não é olho gordo, mas é o fato do teatro ser mau olhado por todo mundo mesmo. A maior parte das pessoas fica no raso. Quase ninguém o vê com profundidade. 

O teatro é mau-olhado pelo público, pela crítica, pelos atores. O público não vê com profundidade, a crítica também não, e muito menos os atores, e consequentemente o restante dos profissionais de teatro. Quase ninguém mergulha com profundidade. Temos muitos espetáculos e pouco teatro. Quando assistimos aos espetáculos sentimos que na maior parte deles os próprios atores não sabem o que fazem, se fazem não têm consciência, não têm conhecimento profundo. Temos cada vez mais atores mais frágeis, sem saber o sentido do seu papel enquanto pessoas de teatro. E só iremos mudar esta estrutura quando tivermos conhecimento profundo sobre o que fazemos. A academia não faz e não fará isso. A maior parte dos "novos atores da academia" saem mais confusos do que conscientes de seu papel, pois a maioria vai buscar um diploma pensando que isso vai tornar uma pessoa ator ou atriz, e não vai, meu filho! O teatro se rebela e passa longe disso. 

Até porque um ator não se forma na academia, mas na vida. Ele é um conjunto de tudo que já viu, sentiu, andou, leu. Claro que ele precisa estudar, mas não é só isso. Não mesmo! Pensando em Mossoró, realidade que conheço como ninguém, as perspectivas de novos e bons atores são cada vez menores, pois faltam pessoas de conhecimento profundo. Temos muito poucas, e estas poucas não são muito levadas em consideração. Hoje todo mundo quer saber fazer tudo (direção, atuação, iluminação, cenário, figurino, projeto, produção) e por isso as pessoas só arranham mas não adentram para conhecer profundamente, absolutamente nada. Adolescentes que fazem um espetáculo e precisam ter toda uma trajetória são apontados pelos colegas de teatro, jornalistas, professores, público, como grandes atores, quando na verdade para ser ator é necessário percorrer uma estrada bem longa. O teatro mossoroense é precipitado. 

O poder criou a ideia de que somos muito bons, os jornais repetem, o povo repete, e nós acreditamos. Até os vereadores de Mossoró, que nunca assistem aos espetáculos dos grupos, quando discursam sobre nós, dizem que "os artistas da terra não deixam a desejar para ninguém de fora". Que autoridades em teatro, meu Deus!  Os fazedores de teatro de Mossoró não conseguem, nem têm interesse em conversar sobre os espetáculos, o que querem são elogios, rasgações de seda, gritos de "arrasou", quando a responsabilidade com o teatro vai na direção oposta. E neste mau sentido, Mossoró está fazendo escola, infelizmente, em Apodi, minha terra natal, e em uma série de municípios que começam a distorcer esta responsabilidade do teatro. Como os grandes eventos de Mossoró mascaram tudo isso! Este ano o Auto da Liberdade foi diferente, e seria fundamental que debatêssemos sobre, para que estas mudanças afetassem os outros espetáculos. 

O máximo que constatei foi um ou outro artista dizer que o melhor foi esse ou aquele ato do Auto, como se estivéssemos em competição. 

O poder não faz teatro, ele faz espetáculo. O espetáculo serve pro turismo, mas não serve para transformar. Estes espetáculos do poder não puxam tapete de ninguém, apenas ratificam um pensamento dominante das prefeituras, governos e da igreja. Quando nos dão a oportunidade de fazer nós vamos lá e nos rebelamos contra esta maneira tradicional, como foi feito no Auto deste ano. O simples fato do Auto da Liberdade ter acontecido sem gravação já demonstrou que nossos atores precisam correr para se aprofundar no que fazem. Acho complicado a maior parte dos diretores dos autos se contentar com tão pouco, ao se referir que se a plateia gostou é porque foi bom. E não é isso! Precisamos respeitar mais o teatro.

Em Mossoró, mas não é diferente do restante do país, os artistas vivem procurando a aprovação da plateia ao invés de traçar seu caminho enquanto artista, consciente, melhorando. Precisamos de mais atores com vocação, que encarem o teatro como este sacerdócio. Atores certinhos, corretos, bonitinhos, que cantam bem, afinados, bem vestidos, o "inferno tá cheio". Precisamos daqueles que transgridem, que vão até às profundezas, onde a maior parte não tem coragem ou jamais imaginaria ir. Ai de nosso teatro, de nossas artes, de nossa história, se não fosse este tipo de gente. E para ir lá no fundo precisa de conhecimento para poder chegar lá (do corpo, do intelecto e da alma).

Neste estudo com o Cacá, a cada exercício apresentado ele provoca mais cada ator, a partir das circunstâncias, aquelas mesmas tão citadas por Stanislawski em seus escritos. Algo tão simples e tão falado por tanta gente, mas que vamos esquecendo, e cada vez complicamos mais. 

Em nosso trabalho com o Rei Lear, de Shakespeare, somos incentivados pelo Cacá, para trair a estrutura que elaboramos, previamente. Não deixar a 'mise en scène' apagar, ou esconder, a vida. Nestes dois dias pude ver que a maior parte dos exercícios apresentados por nós, com uma estrutura muito elaborada, acabou escondendo a vida. Mas quando Cacá propunha um exercício pedindo para o ator refazer, mas traindo a estrutura elaborada, apareceu a vida. E é tudo muito simples, e a gente sempre esquece e quer complicar. É como uma casa que não tem muita coisa dentro. A gente entra e vê tudo. Mas quando nós entramos numa casa que tem tudo, a gente entra e não vê praticamente nada. 

Quanto ao meu exercício, apresentei hoje. Desde que cheguei em São Paulo que eu vinha trabalhando. A princípio gostei do que fiz, mesmo não tendo o tempo que poderia ter tido. O meu exercício foi fazer o Rei Lear quando ele está vagando, enlouquecendo pelos campos. Escolhi como objeto uma folha de raio-x, com a radiografia de um crânio, e ao mesmo tempo que dialoguei com ela, eu a utilizei como instrumento percussivo. Mas, de todas as cenas apresentadas nos dois dias a minha foi a única que o Cacá ficou quieto e não disse praticamente nada, nem pediu para repetir, dando outras motivações. Confesso que fiquei com medo, triste até, principalmente por saber que agora ficarão apenas 15, para prosseguir o trabalho com o Cacá, até fevereiro, de uma seleção que se inscreveram quase 200, passando 40, para escolher 20, e o Cacá disse hoje que ficariam apenas 15. Não sei se fico. Fiquei me achando o pior ator do mundo, e passei a encontrar defeitos em tudo que fiz. Mas sei que precisamos destas puxadas de tapete, para sairmos de nossas verdades absolutas, e repensarmos tudo. Hoje vou passar a noite pensando, e continuarei com medo, até sair o resultado da seleção, na sexta-feira. Quero muito ficar! Preciso trabalhar mais enquanto ator.

Dionízio do Apodi
(apenas consciente de que não sabe de porra nenhuma)

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