Os filmes que discutem a sexualidade das mulheres

'Ninfomaníaca', de Lars Von Trier, coroa uma leva de filmes dirigidos por homens que discutem de forma nova a sexualidade das mulheres

Enquanto a neve cai lá fora, uma bela mulher em convalescença senta-se à cama e conta a seu anfitrião histórias sobre sexo. Suas histórias. Assim, como uma perversão de As mil e uma noites, começa um dos filmes mais esperados do ano, Ninfomaníaca, do diretor dinamarquês Lars Von Trier, que entrou em cartaz semana passada. Estrelado pela atriz habitual do diretor, Charlotte Gainsbourg, e pela novata Stacy Martin (que encarna a personagem quando jovem), o filme tinha a intenção de causar escândalo. Anunciou-se o uso de dublês de sexo por causa das cenas explícitas, divulgou-se uma sequência de trailers picantes e mesmo os cartazes do filme sugeriam que todos os atores envolvidos (de Uma Thurmam a Shia LaBeouf) teriam orgasmos desnudos diante do público. Não é o caso. A primeira parte do filme, com uma hora e 50 minutos, que entrou em cartaz agora, oscila entre a ironia e a tristeza. Não choca espectadores adultos e tampouco fornece material inédito aos voyeurs. Antes, desconcerta e oprime. A segunda parte, que estreará em março, com duas horas e dez minutos, promete ser sexualmente pesada – mas também essa expectativa pode ser falsa, resultado do gênio publicitário de Von Trier, sempre engenhoso em criar interesse em torno de seus filmes.

SEXO TRISTE

Charlotte Gainsbourg e Shia LaBeouf, em cena de Ninfomaníaca.Tristeza em lugar de escândalo (Foto: Divulgação)

Com a estreia de Ninfomaníaca, completa-se um ciclo de lançamentos que, desde o final do ano passado, tratam do mesmo assunto, a vida sexual das mulheres. Os outros são Azul é a cor mais quente, do franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, e Jovem e bela, do francês François Ozon. Azul conta a história de amor entre a estudante adolescente Adèle e Emma, uma jovem pintora. O filme tem três horas, ganhou a Palma de Ouro no festival de Cannes e foi tratado por Steven Spielberg, presidente do júri, como obra-prima. A primeira grande história de amor do século XXI, ele disse. Mas as três cenas de sexo entre as duas mulheres (que somam, talvez, 15 minutos) galvanizaram a discussão sobre o filme e quase azedaram seu lançamento.Jovem e bela é menos pretensioso, embora igualmente voltado ao erotismo feminino. Isabelle, a linda protagonista de 17 anos, prostitui-se nos hotéis de Paris nos intervalos entre as aulas do colégio. Ela é de uma família de classe média, não precisa de dinheiro, mas encontra prazer em submeter-se a tipos variados de homens mais velhos. Ozon debruça-se sobre a situação sem tentar explicá-la inteiramente. O resultado é um filme misterioso e delicado.

“Nenhum dos filmes é erótico. Não foram feitos com o propósito de vender sexo ou de excitar. Eles discutem seriamente a sexualidade feminina”, diz Pedro Butcher, crítico e editor do site Filme B, que acompanha os lançamentos do mercado cinematográfico. Esses novos filmes europeus têm pouco em comum com o clássico erótico Nove semanas e meia de amor, de 1986, ou com o futuro Cinquenta tons de cinza, previsto para 2015, do qual se espera estímulos à libido proporcionais à imensa popularidade do livro, sobretudo entre as mulheres. Nesses filmes eróticos, a trama funciona quase sempre como desculpa (boa ou má) para que os personagens tirem a roupa. Em Azul e Jovem e bela, assim como em Ninfomaníaca, é diferente. Nos dois primeiros, o sexo é parte importante da história, que não começa nem acaba nele. Em Ninfomaníaca, o sexo ocupa o centro da trama, mas despido de glamour ou sedução, quase como doença. Nos três casos, não existe a afetação sensual que caracteriza (e esvazia) o tal cinema erótico. “Esses diretores tratam a nudez e o sexo com naturalidade”, diz Marcelo Hessel, editor do site de cinema Omelete. “Seus filmes refletem sobre o sexo, não o exploram.” 

ELAS EM CENA
As atrizes Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux, acima, em Azul é a cor mais quente, e Marine Vacth como Isabelle, a prostituta adolescente de Jovem e bela, abaixo. O cinema discute o sexo das mulheres (Fotos: Divulgação)

Embora dirigidos por homens, os três filmes são narrados do ponto de vista das mulheres, o que também constitui novidade. Em Azul, a câmera de Kechiche parece enfeitiçada por Adèle, personagem interpretada pela estreante Adèle Exarchopoulos. São os sentimentos dela, o corpo dela e o cotidiano dela em cena, o tempo inteiro. Vale o mesmo para o filme de Ozon e, ainda mais, para Ninfomaníaca. São filmes femininos, embora distantes do estereó­tipo feminista. Isso reflete algum tipo de mudança social. No passado, os filmes famosos sobre sexo costumavam ter um olhar masculino. O último tango em Paris, de 1973, primeiro escândalo sexual do cinema moderno, gira em torno de Paul, um americano atormentado de meia-idade, interpretado por Marlon Brando. Ele se entrega ao sexo sem pudores com uma jovem desconhecida num apartamento em Paris. O império dos sentidos, de 1976, censurado no mundo inteiro, mostra sem filtros o mergulho no sexo e na morte de um casal de amantes no Japão de 1936. A loucura dela é o motor da trama, mas é a destruição dele que parece interessar ao diretor Nagisa Oshima. As personagens femininas dos dois filmes entraram para a história do cinema, mas as duas atrizes envolvidas – Maria Schneider e Eiko Matsuda – tiveram suas carreiras destruídas e suas vidas pessoais abaladas pela repercussão escandalosa de suas atuações.

"Por ser homem, não posso filmar a história de amor de duas mulheres?"
ABDELLATIF KECHICHE, DIRETOR 
DE AZUL É A COR MAIS QUENTE

Agora o escândalo é menor, ou quase inexistente – e isso se reflete, negativamente, nas bilheterias. Azul está em cartaz há cinco semanas, em nove salas de cinema em todo o Brasil. Apesar de longas reportagens na imprensa, atraiu apenas 75 mil pessoas. O editor do Filme B prevê que chegará a 100 mil espectadores, considerada uma boa marca para “filmes de arte”. Jovem e bela foi visto somente por 27 mil pessoas. Para efeito de comparação, a comédia Até que a morte nos separe 2, lançada em 740 salas, já vendeu 1,7 milhão de ingressos. “O último tango causou controvérsia e lotou cinemas no mundo todo”, diz But­cher. “Agora não é mais assim.” Mesmo com o lançamento maior e provocativo deNinfomaníaca, que conseguiu 40 salas, não se espera uma grande bilheteria. Parece que o público, anestesiado pela pornografia sem limites na internet, não se escandaliza mais – e tampouco se interessa pelo que o cinema tem a dizer sobre o sexo. A forma de tratar (ou não tratar do assunto) é ditada pelo grande cinema comercial americano, cada vez mais pudico devido ao sistema de classificação etária de seus filmes. Cenas de sexo e nudez tornam a exibição imprópria para audiências juvenis e destroem as chances de uma boa bilheteria, conquistada, invariavelmente, nas férias escolares. Por isso, os diretores abusam do erotismo adolescente, repleto de frases e imagens insinuantes, mas evitam tratar o sexo de frente. Isso contribui para o que os críticos chamam de juvenalização da produção de Hollywood (uma inflação de filmes de aventura “para a família”) e deixa o cinema europeu mais ou menos sozinho no trato da sexualidade adulta.

Essa situação traz seus próprios problemas. Kechiche foi acusado por suas atrizes de ter passado dos limites na repetição das cenas de sexo entre as duas. Léa Seydoux disse que se sentiu “como uma prostituta” e que não trabalharia mais com o diretor. Ao mesmo tempo, ele foi acusado por Julie Maroh, autora da história em quadrinhos que deu origem ao roteiro deAzul, de ter feito um filme “masculino” com a história de duas lésbicas. Ele ficou furioso. “Quer dizer que, por ser homem, não posso filmar a história de duas mulheres?”, disse.

Com as inevitáveis polêmicas, esta última leva de filmes europeus sugere que a tarefa de discutir o sexo de forma adulta no cinema está em boas mãos. Apesar das provocações e do tom de farsa adotado por Von Trier, apesar da forma como ele interfere com longos e inúteis parênteses na narrativa, seu Ninfomaníaca é, no mínimo, perturbador. Às vezes, parece lírico, outras vezes ridículo – como na cena em que o clube das devassas juvenis recita, em tom de oração, o mantra “mea vulva, mea vulva, mea maxima vulva” –, mas jamais é banal. Frequentemente, pode ser tocante. O diretor de Melancolia (2011), Anticristo (2009) e Dogville(2003) não filma para nos deixar indiferentes. 

Por :IVAN MARTINS / Epoca


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