Woody Allen, um artista na berlinda.

A acusação de abuso sexual da filha adotiva manchou a imagem do ator. Em meio às dúvidas sobre o caso, os fãs do cineasta têm uma certeza: talento não é uma questão de caráter.

Woody Allen, em retrato de 2010. A crítica o reconhece como gênio. O público tem dúvidas sobre seu comportamento (Foto: Guerin/Contour by Getty Images)

Qual o seu filme favorito de Woody Allen? Encontrar uma resposta é cada vez mais difícil. Aos 78 anos, Allen é um dos diretores mais profícuos e premiados de Hollywood. Ele dirige e escreve um filme por ano desde 1982. Nem todos são considerados geniais pela crítica e pelo público, mas poucos diretores são tão consistentes. Em toda a sua carreira, Allen recebeu 24 indicações ao Oscar e ganhou quatro estatuetas. Há duas semanas, a pergunta se tornou ainda mais dura para os fãs do diretor. É com ela que Dylan Farrow, filha adotiva de Allen, começa um texto em que acusa o pai de ter abusado sexualmente dela aos 7 anos, no sótão da casa em que morava. Publicado no site do jornal The New York Times poucos dias depois de Allen ter ganhado um Globo de Ouro pelo conjunto de sua obra, o texto afirma que “Woody Allen é a prova viva de que a nossa sociedade falha com as vítimas de abuso sexual”. Ao final, Dylan repete a pergunta do início do texto. Qual o seu filme favorito de Woody Allen?

O depoimento de Dylan repete suspeitas trazidas à tona em novembro de 2013 pela revista americana Vanity Fair, numa longa reportagem em que Mia e Dylan falam sobre o caso. As acusações repercutiram nos principais jornais do mundo e causaram comoção na internet. Lena Dunhan, criadora da série Girls, manifestou apoio a Dylan. Mia e Ronan Farrow, mãe adotiva e irmão de Dylan, reforçaram a campanha contra Allen. Ele negou ter cometido o crime e afirmou que o depoimento de Dylan era “inverdadeiro e desgraçoso”. Famosos e anônimos saíram em sua defesa. Moses, outro filho adotivo de Allen e Mia, afirmou que a mãe faz uma lavagem cerebral em Dylan e lamentou a discussão: “Acho que minha irmã está perdendo muito por não se reconectar com o pai, que sempre a adorou”. Robert B. Weide, diretor de um documentário sobre Allen, publicou um longo artigo em que reúne evidências contra o abuso sexual. Segundo ele, Dylan foi manipulada por Mia para jogar a opinião pública contra Allen durante a separação do casal, em 1992. Segundo Weide, durante a investigação, Allen passou por um detector de mentiras – e Mia se recusou a fazer o teste. Michael Wolff, colunista do jornal britânico The Guardian, afirma que ressuscitar a história de 1992 é um estratagema de Mia para chamar a atenção da imprensa para sua carreira de ativista humanitária e apresentar Ronan aos holofotes. Se era isso, deu certo: o trabalho de Mia no Sudão voltou a aparecer, e Ronan, antes um desconhecido do público, foi contratado pouco tempo depois pela rede de televisão MSNBC. Para os fãs de Woody Allen, o debate midiático provocou, além de interesse, um exame de consciência. Será que um suspeito de abuso merece que seus filmes sejam vistos e elogiados? Nas redes sociais, milhares de pessoas afirmaram que não assistiriam mais aos filmes de Allen. Outra multidão dizia que continuaria a acompanhar e elogiar o trabalho do diretor, seja ele culpado ou inocente.

Se as acusações de Dylan forem verdadeiras, Allen se reuniria a uma longa lista de artistas que são admirados por sua obra, mas condenados por seu comportamento. Um dos casos mais lembrados durante as discussões sobre o possível assédio a Dylan envolve o diretor polonês Roman Polanski. Em 1977, ele confessou ter feito sexo com uma garota de 13 anos na casa do ator Jack Nicholson. Para escapar de uma sentença de prisão, fugiu dos Estados Unidos e nem sequer pôde receber o Oscar de Melhor Diretor por O pianista, em 2003, sob o risco de ser preso no palco. A condenação e o status de fugitivo não impediram que seus filmes continuassem a receber elogios da crítica e do público. Mesmo assim, houve quem protestasse contra os jurados da Academia Americana de Cinema pela decisão de glorificar um criminoso.

FAMÍLIA DIVIDIDA

À esquerda, Woody Allen carrega Dylan Farrow no colo, ao lado de Mia Farrow e do filho Satchel. À direita, Dylan nos dias de hoje. Desde a separação, ela e o pai não se falam (Fotos: Getty Images e Frances Silver via The New York Times)

“A boa arte requer talento, sensibilidade e inteligência. Nada disso tem a ver com caráter”, afirma o filósofo Allan Janik, professor da Universidade de Viena e organizador de um ciclo de debates sobre arte e crime. “O compositor renascentista Carlo Gesualdo era um assassino e escreveu alguns dos madrigais mais belos da história. Seus crimes não tornam sua música menos genial.” Há outros exemplos históricos. Richard Wagner, antissemita convicto, foi um dos maiores compositores de todos os tempos. Martin Heidegger nunca se desculpou por seu envolvimento com o nazismo. Isso não impede que seja considerado um dos maiores filósofos do século XX. Caso o depoimento de Dylan seja verdadeiro, filmes como Manhattan e Noivo neurótico, noiva nervosa não se tornarão menos geniais. As obras têm vida independente de seus autores, por mais que os contemporâneos do artista tenham dificuldade para aceitar isso. “Vivemos numa sociedade em que não há grandes heróis, santos ou imperadores. Mas continuamos precisando admirar alguém, e os artistas cumprem esse papel”, diz Janik. “O talento faz os artistas parecer sobre-humanos para nós, e nossa decepção é imensa quando eles mostram suas falhas.”

A incerteza sobre a culpa de Allen torna seu caso ainda mais incômodo para o público do que as histórias de gênios do passado e do presente que cometeram crimes. Não há confissão nem evidências que comprovem a história de Dylan. Em circunstâncias normais, a versão de alguém que se diz vítima de abuso teria mais peso do que a de seu possível abusador. Mas não há nada de normal na vida familiar de Woody Allen e Mia Farrow. Os dois moravam em casas separadas e nunca se casaram oficialmente, mas foram um dos casais mais célebres de Hollywood nos 12 anos em que estiveram juntos, desde 1980. Nesse período, trabalharam juntos em 13 filmes e adotaram três filhos. O relacionamento durou até janeiro de 1992, quando Mia descobriu que Allen tinha fotos íntimas de Soon-Yi, filha adotiva de Mia e do compositor André Previn. Em seguida, ele abandonou Mia para ficar com a filha dela – e disse à revistaTime que não via nenhum grande dilema moral em sua atitude. Em agosto, mês em que Dylan afirma ter ocorrido o abuso sexual, a separação de Mia e Allen e o escândalo do novo relacionamento com Soon-Yi eram o principal assunto dos tabloides. Na ocasião, Allen disse que a acusação de abuso sexual era “uma manipulação de crianças para fins vingativos”.

Uma gravação em que Dylan relata o abuso foi usada durante a briga judicial de Allen e Mia pela custódia dela e de seus dois irmãos. No início da investigação, Allen disse que nunca esteve no sótão onde era acusado de ter praticado o abuso. Quando uma investigação comprovou que havia fios de cabelo seus no local, ele disse que talvez tivesse colocado a cabeça para dentro da porta uma ou duas vezes. A posição em que os cabelos foram encontrados não permitiu que o laudo atestasse que ele estivera lá com Dylan. Em seguida, um exame feito no Yale-New Haven Hospital concluiu que não havia evidências de que Dylan sofrera algum abuso. Allen perdeu a guarda dos filhos, mas a Justiça americana não chegou a nenhuma conclusão sobre o abuso. Allen e Dylan se afastaram. Ele mandou cartas para a filha em 2004 e 2007. Não teve resposta. Embora não haja evidências que comprovem seu relato, Dylan continua a afirmar que sua versão é correta. “Há muitas coisas das quais não me lembro, mas lembro-me do que aconteceu naquele sótão”, diz. “Lembro o que estava vestindo e o que não estava vestindo.” Mais de 20 anos depois do ocorrido, é improvável que os fãs tenham uma resposta definitiva sobre o caso. Conviver com a dúvida é tão difícil quanto escolher um filme favorito de Woody Allen. 

Por : DANILO VENTICINQUE /Epoca

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